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“A gente não quer só comida”

Vinícius Lordes Dias
out. 26 - 5 min de leitura
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O verso que provoca este artigo é da música “Comida” dos Titãs, lançada no disco “Jesus Não Tem Dentes no País dos Banguelas”, do ano de 1987. Importante destacar algumas peças de contexto daquela época. Estávamos no Brasil vivendo um caos econômico, uma hiper inflação, o abismo social cada dia maior entre as classes no país, portanto, nas gôndolas do supermercado havia pouca diversidade de marcas de produtos, aspecto no qual ao longo do tempo foi se verificando uma melhora. A comida, tal qual apontava a canção dos Titãs, não era para todos, era um bem com acesso muitíssimo restrito e para alguns poucos. Além desta peça de contexto cabe olhar para uma outra que a canção explora: A dimensão cultural e simbólica da comida.

Os versos da música apontam para uma dicotomia entre o concreto e o simbólico, como exemplo temos: “A gente não quer só comida, a gente quer comida, diversão e arte”. Os termos diversão e arte, assim, de forma genérica como na canção, apontam para um querer mais amplo que apenas comer. Ou seja, não bastava apenas se alimentar também era necessário que houvesse outra dimensão a ser dialogada na vida: a dimensão cultural.

A cultura, como as lentes que nós vemos o mundo e com as quais nos relacionamos com ele, também nos faz comer não o que necessitamos para nos alimentarmos, mas sobretudo, nos alimentamos de cultura. Ou seja, necessitamos também do composto simbólico para compreendermo-nos como parte de uma sociedade.

A dimensão cultural da comida está em todos os povos. Para um exemplo as tribos que praticavam a antropofagia, dito em outras palavras e que ganhou um sentido mais pejorativo, o canibalismo, não era uma questão propriamente alimentar, ou seja, para se saciar com uma iguaria qualquer. Estas tribos tinham esta prática ritual e eram escolhidas as presas para serem devoradas. Tais presas deveriam ter certos atributos que para aquela tribo eram considerados como importantes O que significava isso? As tribos que praticavam a antropofagia acreditavam que ao comer a carne daqueles humanos com os atributos necessários estariam sim, recebendo tais atributos. Eis aí uma explicação para a “deglutição do bispo Sardinha”no manifesto antropofágico dos modernistas.

Esta ilustração da antropofagia nos leva a dialogar com o aspecto mais simbólico da alimentação. Para além de apenas nos saciarmos, ou seja, matar a vontade, ou a necessidade, articulamos enquanto consumidores outras questões na hora de nos alimentarmos. A comida não é apenas a saciedade de uma necessidade, é também o diálogo permanente com a cultura de onde estamos.

Seguindo nessa trilha assisti à série documental do Netflix Street Food América Latina. Nos episódios pude encontrar esse diálogo sendo realizado. Na série, cada capítulo tem a perspectiva de mostrar dois ou três cozinheiros que fazem pratos emblemáticos daquela culinária e contar um pouco da história destes cozinheiros e as imbricações dessas histórias com seu ofício. Mas para quem observar um pouco além vai escutar também os aspectos culturais ecoando nos capítulos.

Cada cozinha se construiu a partir de necessidades geográficas e sofreu influências de fluxos migratórios e imigratórios, formando assim, uma colcha de retalhos gastronômico nos países. A comida deixa de ser apenas uma necessidade e passa a contar uma história com um caleidoscópio de influências. Um dos episódios que me chamou a atenção foi o da Argentina, pois nos pratos apresentados é possível compreender as influências sobretudos europeias na alimentação do argentinos. Segundo o episódio, das populações originais quase não resta muito, mas as influências dos imigrantes que ali chegaram está fervendo. 

A comida argentina é uma miríade de influências. E por trás disso há muita potência naquela comida. A presença forte do trigo, das massas, os pães, as empanadas, que são feitas de forma diferente em cada província, apontam para as escolhas culturais realizadas ao longo do tempo por aquela população. Um exemplo de comida e cultura naquele país é o choripan, que aqui no Brasil, pelo menos nos municípios do interior, ganhou uma versão não menos importante que é o pão com linguiça. Alimentos oriundos das roças caipiras como o pão e a carne de porco moída. 

No argentina o choripan é mostrado como um equivalente cultural do hot-dog americano. Consumido nos estádios de futebol argentinos tanto na entrada para os jogos quanto nas saídas. O hot-dog é vendido durante a partida e é parte do programa naquela ocasião. 

A comida com o papel de unir pessoas, fortalecer laços e criar esses laços é mostrada na série como parte importante da construção das  identidades culturais, sobretudo na América Latina onde seus principais pratos são exemplares de comida para compartilhar. Nesse sentido, uma possível chave para compreender a cultura dessas regiões seria compreendê-la como o laço que une diversas culturas, imigrantes, etnias, mesmo que pouco ou nada reste dos povos originais de alguns destes lugares. Por fim, cabe relevar a ideia de que nos alimentamos de cultura a cada refeição que fazemos. A gente quer comida e muito mais.


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