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Assim como podemos olhar para uma obra de arte de maneira simbólica para tentar extrair pistas sobre o espírito do tempo em que aquela obra foi criada, também podemos olhar para um produto e entender como a sua estética, funcionalidade e modos de uso são um reflexo do contexto social em que ele foi concebido.

A bolsa 2.55 da Chanel, por exemplo, mistura elementos semióticos dos universos masculino e feminino e nos informa sobre o processo de entrada das mulheres dentro do espaço público, que antes era um espaço tipicamente masculino. As linhas retas da bolsa são inspiradas na acrópole grega, lugar onde os homens iam discutir as questões da cidade. Já a alça da bolsa é feita com um aramado típico do barroco alemão, entremeado com um ferro e um couro por dentro. Esse barroco é um vocabulário frequente dentro do mundo feminino. A junção da estrutura quadrada e reta masculina com a alça feminina reflete a entrada das mulheres dentro do mundo masculino e simboliza essa interação entre os dois universos.

Apesar das análises complexas que podemos fazer a partir dessa ideia, o antropólogo inglês Alfred Gell defende que a arte e os objetos não são um mero aparato simbólico de uma sociedade, uma plataforma de simbolização do contexto social. Ele tenta entender a arte e os objetos dentro de um sistema onde as coisas agem. Ele acredita que os objetos são “fruto de uma atividade técnica de transubstanciação engenhosa de materiais e das ideias a eles associadas”. As coisas não são coisas por si só. À medida que os objetos são criados, a depender da maneira como essa criação se dá, eles contêm ideias sociais dentro deles que permitem que eles ajam como qualquer outro ser social age.

Lembro de quando eu era criança e acompanhava minha avó recebendo a imagem da Mãe Rainha em casa. Quando um devoto olha para essa imagem, não está vendo apenas uma representação simbólica da sua santa de devoção, está vendo a própria santa. Por isso essa imagem tem agência e consegue abençoar as casas dos devotos por onde passa.

Charles Peirce, pai da semiótica moderna, defende que as coisas que fazem parte do nosso mundo podem ser divididas em três categorias: símbolos, índices e ícones. Os índices, categoria que nos interessa neste artigo, são coisas que estabelecem relações entre duas ideias de campos distintos, permitindo a correlação entre essas duas ideias. Quando vemos fumaça de longe, conseguimos imaginar e prever que ali existe fogo, mesmo sem estar vendo o fogo em si. O índice estabelece esta relação e te obriga a se comportar de outra forma. Quando olhamos para um objeto, ele me traz imagens para além daquilo que ele é individualmente. Por isso, ele me obriga a me comportar com essa outra dimensão que ele tem, que é a dimensão das imagens que as coisas evocam quando nos relacionamos com elas.

Uma caneta BIC e uma caneta Montblanc escrevem da mesma forma. Mas quando um indivíduo chega em uma reunião e coloca uma Montblanc em cima da mesa, ela tem a capacidade de fazer as pessoas entenderem que ele precisa ser tratado como alguém que tem grana pra comprar uma caneta dessa. Isso não acontece porque a caneta simboliza dinheiro, mas porque a caneta tem a agência de posicionar o indivíduo que a porta no topo da pirâmide socioeconômica do Brasil.

Gell afirma que “a agência do objeto fala dessa característica relacional, que permite que a gente até trate os objetos como pessoas”. É comum vermos pessoas dando nomes aos seus carros, que é um objeto com muita agência. Esses objetos têm a capacidade de não só codificar um conjunto e uma rede de relações, mas de permitir também que novas ações, novos comportamentos, novas formas de agir e pensar surjam só porque eles estão ali. Eles são propulsores, criadores de um novo conjunto de ações, de uma nova forma de viver.

Dentro da dinâmica das mulheres ricas, uma bolsa de luxo tem um papel muito diferente de uma bolsa comum. A bolsa de luxo tem uma agência. Ela posiciona a pessoa hierarquicamente dentro da estrutura social. Por estar portando aquela bolsa, que inclusive chega antes mesmo da pessoa, ela vai ser tratada de uma maneira diferente. A bolsa tem o poder de catapultar os indivíduos para territórios e lugares que eles não tinham acesso antes.

Se você não está usando coisas de rico, você não tem acesso, você não entra nesse encadeamento de ações, você não faz parte desse mundo. As coisas de rico tem a agência de colocar um indivíduo em um novo contexto social.

Outro exemplo de objeto que possui essa característica relacional forte é a Echo, caixinha de som desenvolvida pela Amazon conectada à assistente virtual Alexa. Nesse caso, fica ainda mais claro a incorporação de ideias sociais dentro do produto uma vez que a assistente é acionada através de comandos de voz e responde de maneira conversacional. O produto cria uma nova forma de viver ao gerar uma nova forma do usuário se informar, se entreter e automatizar funções relacionadas à sua casa e à sua rotina. Essas características fazem com que o produto seja tratado como um outro ser social qualquer, como se fosse uma pessoa exercendo função de assistente pessoal.

Quais produtos presentes no seu cotidiano você trata como gente e qual a agência deles na sua vida?

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