{"status":200,"response":{"result":"PUBLIC_ARTICLES_RETRIEVED","data":{"count":1,"content":[{"id":"5fd8cb4e7e084e1c767c2860","updated":"2020-12-16T18:03:02.806Z","created":"2020-12-15T14:42:21.917Z","statuses":{"approval_status":"approved","publish_status":"published","visibility_status":"public","has_pending_changes":false,"is_pinned":false,"is_paywall_disabled":false,"scheduled_date":null,"rejection_reason":null},"metadata":{"location":"home","location_slug":"blog","content_type":"post","publish_date":"2020-12-16T18:03:02.977Z","likes_count":0,"bookmarks_count":0,"comments_count":0,"score":"2020-12-16T18:03:02.977Z","sharing_title":"A Casa e a festa: dimensões etnográficas","sharing_description":null,"sharing_image":"https://5f1ae31a2b397e299b74e383.redesign.static-01.com/f/images/ada9865e9536cf839c68d4e52a5c82d0119fb1ef.jpg","tag_ids":["5fc3ba6c44e0e02c21bb2f37","5fd8cb4e7e084e1c767c285d","5fd8cb4e7e084e1c767c285e","5fd8cb4e7e084e1c767c285f"],"author_user_id":"5f7e00f9b733091b7e47b195","moderator_user_id":"5f8ddcae6452e87432b42d25","project_id":"5f1ae31a2b397e299b74e383","course_id":null,"course_module_id":null,"group_id":null,"version":1,"tags":[{"id":"5fc3ba6c44e0e02c21bb2f37","title":"etnografia","slug":"etnografia","project_id":"5f1ae31a2b397e299b74e383"},{"id":"5fd8cb4e7e084e1c767c285d","title":"festa","slug":"festa","project_id":"5f1ae31a2b397e299b74e383"},{"id":"5fd8cb4e7e084e1c767c285e","title":"casa","slug":"casa","project_id":"5f1ae31a2b397e299b74e383"},{"id":"5fd8cb4e7e084e1c767c285f","title":"coletivo","slug":"coletivo","project_id":"5f1ae31a2b397e299b74e383"}]},"content":{"title":"A Casa e a festa: dimensões etnográficas","slug":"a-casa-e-a-festa-dimensoes-etnograficas","cover_image":"https://5f1ae31a2b397e299b74e383.redesign.static-01.com/l/images/ada9865e9536cf839c68d4e52a5c82d0119fb1ef.jpg","headline":"Cheguei ao local da festa por volta de 14h. Era um sábado o dia estava com sol. Era um sol de outono. Fim de maio. O evento tinha um motivo","main_content":"

Cheguei ao local da festa por volta de 14h. Era um sábado o dia estava com sol. Era um sol de outono. Fim de maio. O evento tinha um motivo inicial: arrecadar fundos para a Casa Coletiva - ACasa. O outro motivo e talvez o mais importante era o de colocar os pés ali naquela comunidade. ACasa era um espaço de ideias. O coletivo se reunia sempre às segundas-feiras naquele local, religiosamente às 19h, como me informou um dos membros do coletivo. Na frente dACasa havia uma igreja evangélica Maranatha. Um dos traços mais contemporâneos de que estamos numa periferia é a presença de várias igrejas evangélicas. Uma delas era esta que estava localizada na frente dAcasa, mas ao longo do caminho para chegar ao bairro era possível ver pelo menos três outras. Era uma festa. Mas era um ritual de aproximação. A festa funcionava também como uma mediação.

A entrada nACasa, quando da primeira vez que fui para uma reunião houve uma espécie de estranhamento. Tanto pela minha minha presença por parte dos membros do coletivo quanto de minha parte. A “gente jovem reunida”, na minha entrada tinha uma forma de falar, assuntos e se entreolhavam com a presença de um estranho. Naquela primeira reunião me senti como apontado pelo Geertz, um espectro pelo qual os olhares passavam e não se fixaram. Os assuntos giravam em torno de políticas públicas de cultura da cidade e estratégias de atuação do coletivo e dos outros coletivos de produção artística que àquela altura proliferavam por muitos lugares da região metropolitana.

O bairro onde estava localizada ACasa (a grafia era essa mesmo, uma espécie de junto e misturado) era na periferia de Vitória - ES. Ficava próximo a uma das avenidas mais importantes da cidade, a Reta da Penha, mas era um bairro de população de maioria negra e parda e renda familiar abaixo de 2 salários mínimos. O coletivo havia se mudado de uma casa no centro da cidade, bairro que abriga a boemia da cidade, bem como jovens universitários e profissionais, recém formados, alguns intelectuais circulavam por ali também. Estes últimos, migraram de uma outra zona boêmia próxima da universidade e passaram a frequentar o centro da cidade. De uns 20 anos para hoje esta parte do centro passou a ser vista como um bom lugar para se morar, houve uma certa revitalização do bairro e um processo de mudança da população que ali passou a morar, frequentar os bares e empreender lugares também. Os imóveis passaram a ficar mais caros e os valores dos aluguéis idem. Essa foi a deixa para o coletivo tomar a decisão de mudar de bairro.

O coletivo era formado por jovens com idade entre 25 e 32 anos. Em sua maioria passaram pela universidade. Eram oriundos dos cursos de jornalismo, artes e cinema. A ideia do coletivo nasceu dentro de um projeto de extensão de uma das disciplinas do curso de jornalismo que um membro do coletivo frequentava à época. A partir deste projeto foi que ela pensou na possibilidade de formar um grupo de produtores artísticos para movimentarem as políticas públicas de cultura na cidade de Vitória.

ACasa foi transferida para o bairro Itararé, bairro de periferia que foi formado a partir da industrialização tardia do Espírito Santo, entre os anos 60 e 70. A população inicial destas regiões era vinda do Nordeste, em especial da Bahia, em busca de trabalho na indústria capixaba. Parte de um êxodo urbano que atraía mão de obra para as grandes cidades para trabalhar nas grandes plantas industriais. Este bairro fazia parte de uma região chamada Região VI, uma dessas divisões municipais feitas, em geral, para definir políticas públicas de saúde e/ou educação. Formando um outro mapa da cidade.

A festa promovida pelACasa tinha, como dito anteriormente, dois motivos. Um deles de dimensão mais concreta e o outro mais simbólico. Este talvez importasse mais aos membros do coletivo, pois era uma forma de entrar na comunidade não como um estranho, um alienígena, embora o fosse por natureza, mas acenar àquela comunidade, produtores locais, que estavam dispostos para o diálogo.

A Festa estava marcada para às 15h. O objetivo era não acabar muito tarde para não incomodar os vizinhos para que o coletivo não fosse mal visto logo de cara na sua chegada ao bairro. E também para não perturbar muito a ordem da igreja que ficava bem na frente.

Cheguei à Acasa e já encontrei a Aline que era uma das responsáveis pelas bebidas naquele dia e o Rafael, este estava responsável pelo som da festa. Ela foi quem deu início ao coletivo após a experiência na extensão universitária. Aline havia me dito que estava lá desde às 08h da manhã para fazer a limpeza do freezer e colocar a bebida para gelar. Basicamente cervejas e água. A venda das bebidas seria parte para o coletivo e outra para pagar os fornecedores. Rafael e Aline tinham iniciado o coletivo. Foram fazer uma experiência de coletivo de produção artística em um coletivo de fora do estado.

Aline me dizia que a festa estava bem organizada porque tinham feito com muita antecedência o planejamento para aquele dia. Rafael foi resolver uma instalação elétrica num dos cômodos da casa onde aconteceria uma instalação de um artista amigo do coletivo. Em seguida chegou o Henrique, produtor musical e namorado do Rafael. Não fazia parte do coletivo, mas atuava muito próximo quando havia algum evento. Henrique era ceramista também, tinha cursado artes plásticas na Ufes. Estava envolvido com o movimento estudantil quando conheceu a Aline numa das ações de extensão da universidade, o evento Prata da Casa. Festival de bandas novas no cenário capixaba. Ao todo, no coletivo, eram cinco pessoas que tocavam, coordenavam e se reuniam com frequência. A Aline, o Rafael, a Laila, a Lara e o Tom.

Todos eles estavam envolvidos de alguma forma naquela festa. O Tom e a Laila estavam no caixa vendendo as bebidas. O espaço era a cozinha dACasa. A propósito, ACasa era uma casa de bairro residencial, datada dos anos de 1980, mais especificamente 1985. Era uma casa em que moraram os pais da Lara e suas duas irmãs. Era um sobrado de dois andares que se ligavam por uma escada de concreto sem corrimão. O primeiro andar não estava ocupado, mas quando a família da Lara morava ali era ocupado pelo irmão do pai dela. Ao adentrar a casa havia uma sala grande. À esquerda havia um quarto e à direita havia mais dois quartos e um deles com suíte. O que não era muito usual pela data da construção. Seguindo a sala dava para um banheiro, o social, e mais um quarto, este parecia ser usado como um escritório quando da ocupação da família. E mais ao fundo a cozinha que dava para uma varanda de fundos. A cozinha fora ocupada para a festa e não havia acesso para todos, “só ao pessoal do coletivo era permitido”. Mas o acesso à varanda estava liberado, sem passar pela cozinha. A dinâmica era: comprar a ficha para a bebida, água ou comida ao lado e pegar a bebida com um dos membros do coletivo que estava na cozinha. Quando cheguei e fui buscar uma cerveja a Laila estava no caixa e no serviço da cerveja. Ainda não tinha muita gente na festa, por isso era possível trocar uma ideia também. Ela me disse que estava no coletivo desde o ano anterior àquele (o ano era 2018, portanto ela estava frequentando o coletivo desde 2017). Ela estava se formando naquele ano em comunicação social e estava um tanto desacreditada no mercado de trabalho, a propósito, traço de uma geração que sente uma espécie de desencanto e procura uma atividade que traga propósito além de boa remuneração. Não queria trabalhar em agência e nem queria ser jornalista de redação, ela achava meio chato o ambiente de agência, mas não fechava a porta total para a redação de um jornal. Embora ela também acreditasse nas mídias alternativas. Tinha vontade de investir na fotografia, mas queria que não fosse para aniversários e casamentos, daí perguntei “o que seria então?”, “ah sei lá, uns projetos tipo sebastião salgado...” e ela riu, eu ri também. Depois, ao longo da curta conversa, que durou uma meia garrafa de long neck, ela disse que havia pensado em fundar um blog, uma revista.

A música na festa era basicamente eletrônica. Os computadores que estavam distribuídos para o som da festa tinham setlists para cada meia hora e estava liberado para quem quisesse tocar. A certa altura da tarde, por volta de 17h, as picups foram liberadas para os dj´s. Estes não eram dj´s propriamente ditos, mas eram pessoas ligadas de alguma forma ao coletivo. Assim, as músicas, a cada 30min, poderiam passar de uma playlist de músicas contemporâneas techno para uma de tecnobrega, samba, pagode anos 90. A festa ia ganhando coloridos diferentes a cada 30min. Um desses dj´s era o Tom. que fazia parte do coletivo, havia entrado há pouco tempo, era estudante de desenho industrial e “músico amador”. Se apresentava assim, para fazer contraste com o músico profissional, ele não se considerava como tal. Trocamos uma ideia sobre o novo mercado de música. Ele não acreditava muito nessa coisa nova. Disse que havia um pouco de inocência de achar que o mercado não tomaria essa nova cena, rearranjaria e criaria os novos heróis da música. O Tom tinha esse apelido porque o pai gostava muito do Tom Jobim, e seu nome era Everton, ele dizia que os pais tiveram uma discussão, o pai queria que ele se chamasse apenas Tom, a mãe queria “um nome de verdade”.

Ao longo da festa iam chegando muitas pessoas, alguns passavam, davam um aceno ou tomavam uma cerveja e não ficavam por muito tempo. Algumas pessoas que circulavam por ali eram do bairro. Não tinha me ligado nisso, mas a Aline me chamou e me apresentou a uma das meninas que criou uma oficina de fotografia no bairro, a Juliana. Ela me falou que estava querendo entrar para o coletivo, mas estava muito envolvida ainda com as oficinas. E eu fiquei pensando que o coletivo era uma estrutura mais flexível, menos dura que uma empresa. Era uma organização com alguma dose de liberdade para criações coletivas, embora muitas vezes tenha que prestar contas a algum cliente ou a algum edital do poder público. A Aline estava muito feliz de ver a Juliana ali, naquele momento que conversávamos a Aline disse que estava muito feliz pela presença da galera do bairro e a Juliana disse que tinha movimentado uma turma para ir à festa.

Ao longo do período da festa pude observar que muitas pessoas que passavam por ali eram, de certa forma, ligadas à produção cultural na cidade ou tinham algum histórico nesta produção. Havia gente jovem como os que eram do coletivo e havia gente mais velha que tinha feito parte de um movimento de exploração da música capixaba, sendo autores, locutores de rádio e músicos que nos anos 1990 promoveram uma difusão da música capixaba. Havia ali uma gente que eu só conhecia de nome em encarte de discos, ou capa de livros, ou, no caso dos locutores, apenas a voz. A festa nACasa foi também uma espécie de enlace entre a produção contemporânea de cultura e a produção antiga. Uma espécie de moderno e arcaico que convive e coexiste.

De forma geral, ACasa é uma casa comum, ocupada por artistas e produtores culturais que vão dando às paredes daquela construção uma moralidade outra. Novos atores que reconfiguram as relações da casa. A festa foi o início de uma relação que o coletivo queria manter naquele bairro. Uma festa como ritual de aproximação entre diferentes. Uma festa que poderia ser vista como um momento apenas de diversão deve ser descortinada para compreender seu contexto e suas diversas camadas. Na festa é dada, até aos deuses, a permissão para dançar e estar junto com os não-deuses.

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