Antropologia do Consumo
Antropologia do Consumo
Você procura por
  • em Publicações
  • em Grupos
  • em Usuários
loading
VOLTAR

Supérfluo pra quem?

Supérfluo pra quem?
Rodrigo Bastos
fev. 27 - 5 min de leitura
000

Nenhum produto é básico ou supérfluo por si só. A percepção de básico e supérfluo está atrelada ao nosso lugar social e a uma régua cultural que cada um tem sobre a realidade. Nesse sentido, supérfluo é tudo aquilo que você precisa de uma justificativa cultural para consumir e básico é aquilo que você não precisa de uma justificativa para consumir.

Já ouvi uma conversa em um bar em que uma pessoa falava que antes de se relacionar com alguém ela observava se a pessoa tinha um iPhone. Dentro do lugar social que essa pessoa ocupa, o iPhone é considerado um item básico, ao mesmo tempo em que, para a maioria da população brasileira, um iPhone é considerado supérfluo.

A cultura é o ponto fundamental no estabelecimento das prioridades de consumo dos indivíduos. É ela quem classifica e hierarquiza nossos desejos em termos do que é básico e do que é supérfluo. A lógica racionalista, da economia comportamental ou qualquer outra lógica que não leve em consideração o arranjo cultural ou que pense que os indivíduos se orientam no mercado de consumo simplesmente para satisfazer suas necessidades biológicas não consegue explicar a cultura de consumo. É a cultura que determina o que a gente pode ou não fazer. Consumo é cultura.

Podemos pegar um exemplo que talvez soe menos absurdo ao ouvido da maioria como o da alimentação. Todo e qualquer indivíduo precisa se alimentar para poder subsistir, mas o que a gente come e como a gente come varia de cultura para cultura a partir do sistema simbólico e da razão cultural que baliza esse consumo. A percepção de consumo de uma carne em detrimento da outra, de que uma carne é comestível e a outra não, não está atrelada a uma razão biológica. Isso está atrelado ao nosso jogo cultural.

A carne humana é culturalmente proibida de ser consumida, assim como a carne de cachorro na nossa sociedade. Já os animais que são considerados distantes do ser humano são passíveis de serem comidos. O processo presente nas sociedades ocidentais de transformar os cachorros em pets faz com que, no ocidente, a carne de cachorro seja proibida. O fato dos cachorros serem tratados como (e às vezes melhor que) gente afasta eles da possibilidade de serem comidos. O animal que você come precisa ser visto como culturalmente possível de ser comido, ele precisa estar diametralmente oposto aos seres humanos em uma escala de semelhanças e diferenças culturalmente construídas. O cachorro foi completamente humanizado no ocidente, mas em lugares onde não há essa cultura do cachorro como pet, como na China, o cachorro se torna comestível.

Podemos ir mais longe e lembrar de como, na Índia, as vacas são vistas como um animal que não se pode comer. Nesse contexto sociocultural, a vaca não só está próxima dos humanos, mas está próxima dos deuses. Ela é amiga do deus Krishna e montaria do deus Shiva. Esse deslocamento cultural que aproxima a vaca do território do sagrado faz com que os indianos entendam que aquele animal não é comestível.

A lógica capitalista utilitarista que acha que os consumidores estão sempre preocupados em dar conta de objetivos práticos ou de resolver seus problemas galgados em um ganho claro é muito forte dentro da sociedade americana. Observando isso, o antropólogo Marshall Sahlins diz que a razão prática utilitarista que eles acreditam que guiam os indivíduos nas suas ações para conseguir os melhores ganhos práticos não faz o menor sentido. A relação custo-benefício não está pautada apenas em ganhos e perdas práticas, mas em um vocabulário cultural. A cultura é a razão simbólica. É a maneira como a gente dá valor às coisas socioculturalmente que orienta a nossa prática de consumo.

Para estabelecer um mindset antropológico, é necessário abandonar a ideia de que há uma classificação universal válida para todas as pessoas entre o que é básico e o que é supérfluo. O objetivo a partir desse mindset é o de estabelecer o que importa e o que não importa a partir do ponto de vista de quem está sendo estudado, de um cliente, de um target. Nesse sentido, o processo de produção e consumo é o processo de invenção da cultura. O posicionamento de um produto no mercado nada mais é que colocar este produto dentro de um arranjo cultural, de um contexto sociocultural que permite que ele esteja naquele lugar e que as pessoas tenham vontade de consumi-lo, sem objeções culturais. O processo de contextualização de um produto é o processo de criação desse produto dentro de um arranjo simbólico. Não há universalidade no consumo. Toda forma de consumo é uma forma cultural e essa abordagem é o que vai determinar o sucesso do produto.



Denunciar publicação
    000

    Indicados para você