Antropologia do Consumo
Antropologia do Consumo
Você procura por
  • em Publicações
  • em Grupos
  • em Usuários
loading
VOLTAR

"Comer é um ato biopsicosociocultural"

"Comer é um ato biopsicosociocultural"
Renata Sampaio
abr. 5 - 6 min de leitura
000

O alimento em si, cumpre um papel biológico, entretanto não é possível o desvincularmos de outros papéis que ele passa a cumprir antes mesmo de virmos ao mundo, por exemplo. Quando uma mulher engravida, as pessoas costumam atender aos pedidos de comida, seja pelo fato de não querer que o bebê nasça estranho ou porque não quer um tersol nos olhos. Há até o ato de alimentar essa mulher, mesmo sem ela pedir, pois uma grávida come por dois. Não é mesmo?

O alimento cumpre o seu propósito, mas comer pode cumprir inúmeros. Para exemplificar esse pensamento, utilizo a classificação da Dra. Jan Chozen Bays, pediatra adepta do budismo. Ela trabalha com o mindful eating que nos incentiva a comer com atenção plena e afirma que a prática “nos imerge nas cores, texturas, aromas, sabores e até mesmo nos sons do ato de comer e beber”. Ela classifica que sentimos 9 tipos de fome e sendo assim, como o alimento poderia nos saciar apenas biologicamente?

Os 9 tipos de fome são dos olhos, nariz, tato, boca, ouvido, estômago, corpo, mente e coração. E não é preciso ser praticante do budismo para refletir e perceber como a comida nos sacia de várias formas. 

Indo um pouco mais adiante poderia até dizer que a alimentação faz parte do território do inato, mas o ato de comer, do modo de preparar até o ato de servir e se satisfazer, faz parte do que é considerado superorgânico*. O que construímos camada por camada com tradições, temperos e momentos.
Portanto, se a cultura é algo construído, os nossos gostos por alimentos podem ser fortalecidos tal como os músculos são na academia. Uma criança que se alimenta apenas de leite materno tem uma relação biológica, social e até psicológica com o seu alimento, uma vez que os bebês se sentem mais seguros quando estão com sua mãe por sentir o cheiro de leite. Uma criança que inicia seu processo de introdução alimentar está construindo a sua cultura, exercitando e determinando os seus gostos e ampliando a sua visão de mundo.

Dentre os inúmeros papéis que a comida cumpre, ampliar a nossa visão de mundo é um dos que mais acho fascinante por saber que sempre haverá algo que não vivenciamos. Não à toa, a culinária é denominada uma arte e por sua vez pode ser afetiva, regional, de alta classe, popular e muitas outras, enquanto a gastronomia é a arte de cozinhar em prol do prazer daqueles que consomem. Ambas são artes, se correlacionam, confundem e andam juntas.

Além de ser manifestação artística, a comida é um passaporte. Ela é capaz de nos fazer viajar no tempo ou no espaço. Ela é capaz de ser algo novo para uma pessoa, mesmo que seja uma tradição para várias outras. E foi isso que ficou mais evidente para mim ao assistir à série da Netflix, Street Food. Fui saciada!
Assistir à série me saciou de certa forma pelo coração, olhos e mente. Por um momento era como se eu estivesse viajando para todos aqueles lugares e vendo, parecia que eu podia sentir aqueles sabores e texturas só de imaginar mesmo que nunca tivesse ido àqueles lugares. Pode-se perceber também que gastronomia não está apenas nos restaurantes mais caros e inacessíveis. A culinária está em todos os lugares e reflete o povo, seus gostos, costumes e momentos e, quando atinge esse patamar, se torna uma experiência passada por tradições. 

Uma pessoa não pode viajar para determinado lugar e, sem experimentar a culinária, dizer que conheceu muito bem outra cultura já que ela fala tanto de quem somos enquanto pessoa e enquanto sociedade. A culinária de um local é uma das experiências turísticas que mais nos coloca em contato com a cultura de um lugar e, dependendo, até mais que as pessoas. 

Assistir à série também me trouxe à memória um momento que estava conversando com amigos e refletimos como a comida também pode ser apropriada. A gente falava de um prato acessível e típico do Acre chamado “Baixaria” e até aí tudo bem. O problema surgiu quando vimos uma notícia de que um restaurante chic de São Paulo faria um evento e cobraria um preço nada popular. Diante disso, parafraseio minha amiga, maravilhosa: 

“Vai tomar no c*, né? Vem o cheff da Casa Tucupi, o cardápio com 6 pratos sai por R$280,00 harmonizado. Vocês acham que no Acre estão harmonizando isso aí? É um prato do dia-a-dia. Vai tomar no c*, ô Vila Mariana!”

Comer é um ato biopsicosociocultural e nesse exemplo vemos a comida exercendo um papel cultural para o Acre e, ao mesmo tempo servindo de um diálogo social para mim e meus amigos. Entretanto, se não podemos desassociar o alimento dos outros papéis que ele exerce, ao retirar um prato originário de um lugar, harmonizá-lo e vendê-lo a um preço em que as pessoas que o consomem normalmente não conseguiriam pagar, criou-se outro contexto em que se retira aspectos relevantes de uma cultura em detrimento da outra. Um novo contexto ao qual nem todos têm acesso. 

_______________________________________________________________________


Extra: Só para encerrar. Queria finalizar com essa propaganda do Guaraná que mesmo não sendo um alimento fundamental do brasileiro, mostra com maestria a nossa relação com uma das refeições mais simbólicas do ano: a Ceia de Natal. Mas é pa vê tá? Não pá comer!

 

_______________________________________________________________________

*Superogânico é como Alfred Kroeber descreve a cultura. Ele defende que o homem se desenvolve além do orgânico, por um processo acumulativo de várias camadas:

“O processo do desenvolvimento da civilização é fortemente acumulativo, conserva-se o antigo, apesar da aquisição do novo.”


Denunciar publicação
    000

    Indicados para você