Para muitas culturas o ato de se alimentar extrapola as necessidades do corpo físico, não se restringindo aos aspectos biológicos da nutrição. Para elas, a comida é um elo entre o divino e o mundo real. Esse caráter multidimensional expressa um conjunto de dinâmicas sociais e religiosas que organizam culturas e sociedades e se manifesta no processo de transformação de produtos da natureza em alimentos e na transformação dos alimentos em comida. Dessa forma, dá-se a passagem do natural ao cultural, do biológico ao social, a ligação do indivíduo à sociedade.
Para muitas culturas, comer é um ato sagrado, e o ato de cozinhar com arte é um dom divino que só alguns, os escolhidos, recebem para alimentar todos da comunidade, articulando as diferentes dimensões da vida social, ligando os homens aos deuses, o sagrado ao profano, a tradição à modernidade. Por isso, em algumas religiões, quem domina as técnicas do preparo de certos alimentos torna-se uma pessoa importante dentro da liturgia religiosa, como é o caso específico das religiões afro-brasileiras - e mais especificamente das baianas do acarajé, na Bahia, que vendem pelas ruas essa deliciosa iguaria de origem africana. O nome acarajé, aliás, surgiu da forma como a comida era vendida nas ruas: “acará, acará ajé, acarajé”, que, em iorubá, significa “comer fogo”. Acará quer dizer fogo, enquanto ajeum quer dizer comer.
Neste sentido, o episódio Street Food Salvador, através da alimentação e dos pratos típicos da comida de rua de Salvador, nos mostra claramente as tradições que não são ditas de forma explícita, mas que nos revelam as múltiplas perspectivas e o intercâmbio cultural que originou o povo brasileiro, cuja riqueza originou-se dessa mistura de influências - portuguesa, africana e indígena - e se reflete em um dos sistemas culinários mais diversos do mundo que, inclusive, rendeu ao ofício das baianas o título de bem cultural de natureza imaterial, inscrito no Livro dos Saberes do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), instituição hoje vinculada ao Ministério da Turismo.
O "Dossiê do Ofício das Baianas de Acarajé" - compilação de artigos do projeto Implantação de Inventário: Celebrações e Saberes da Cultura Popular, do Iphan, registra: “ao estabelecerem elos entre os terreiros de candomblé e os espaços da cidade, as baianas de acarajé tornam públicos cardápios sagrados, geralmente desenvolvidos nos terreiros pelas iabassês, conhecedoras dos ingredientes e das maneiras ritualizadas de preparar comidas de santos” (aqui, o livro em PDF: http://portal.iphan.gov.br/uploads/ckfinder/arquivos/Dossie_oficio_baianas_acaraje.pdf).
Por tudo isso, cabe dizer: Bahia, linda de múltiplas cores, aromas, temperos e sabores, como não te amar, principalmente por sua importância no processo de formação da sociedade brasileira!