Antes de assistir ao episódio de “Amor e Sexo Pelo Mundo”, eu não tinha muito conhecimento sobre a Índia. Já sabia que o país tem uma das maiores indústrias cinematográficas do mundo, que é um ambiente marcado por conflitos religiosos e convive com um sistema de castas. Além disso, conheço alguns estereótipos difundidos em séries e filmes.
A forma como essa população lida com amor e sexo definitivamente não estava nessa lista de factóides. Apesar de a questão dos conflitos religiosos já apontar para certo grau de fundamentalismo, certamente a Índia não é o primeiro país que me vem à mente quando penso em Estados intolerantes. Com o episódio da docu-série, entendi que esse povo tem mudado sua forma de pensar, sobretudo, a intimidade.
Provocante e virginal
A frase que mais me chamou atenção no episódio foi dita pela atriz de Bollywood Sunny Leone enquanto ela e a apresentadora experimentavam saris: “Você precisa ser provocante e virginal”. Apesar da fala ter um tom levemente jocoso, ela revela boa parte das tensões tratadas durante a docu-série.
Se por um lado as mulheres indianas estão sujeitas o tempo todo à sexualidade dos homens (que a exercem por meio de assédio e violência, de acordo com o relato das entrevistadas), por outro elas precisam manter certa pureza religiosa. Isso significa não só casar virgem e usar certos tipos de roupa, como também se relacionar com alguém da mesma casta, por exemplo.
Legenda: a atriz Sunny Leone relata que ainda há um estigma forte contra mulheres que decidem viver a sua sexualidade abertamente na India. Fonte: Reprodução/CNN.
Em determinado ponto, uma das entrevistadas afirma que você não se casa só com o seu cônjuge, mas sim com toda a família. Dentro da cultura indiana, a intimidade parece ser entendida como algo familiar e coletivo, e não privado. Tanto que não há uma cultura forte de encontros românticos (com exceção de grandes metrópoles, como Délhi) e os casamentos arranjados ainda têm um peso importante.
Pelas entrevistas, é possível perceber que há diversos aparatos de controle da intimidade. Por exemplo, jovens que não são casados correm o risco de serem agredidos (inclusive por policiais) quando demonstram afeto em público. Tampouco essas pessoas têm a liberdade de viverem seu afeto de forma privada, já que não conseguem alugar uma casa ou até mesmo um quarto de hotel.
A dualidade entre o sagrado e o profano é quase incorporada pelas Hijras. Esse grupo é formado por pessoas que se identificam como mulheres trans (ou como pertencentes a um terceiro gênero) e vive às margens da sociedade indiana.
Elas não são aceitas dentro de ambientes de trabalho tradicionais, sofrem preconceito da família e, muitas vezes, só tem a prostituição como fonte de renda. No entanto, elas recebem doações em trocas de benção: uma herança de quando as Hijras possuíam um papel de destaque na religião Hindu. Após a colonização inglesa, esse grupo perdeu seu prestígio religioso e social.
Legenda: as Hijras muitas vezes são citadas como exemplos da existência de pessoas trans na antiguidade. Fonte: The Guardian.
Caminhos teóricos para o entendimento da sexualidade
Com certa liberdade teórica (e poética, talvez) e sem um rigor acadêmico, trarei um pouco da perspectiva da Teoria Queer para examinar os comportamentos apresentados no episódio de “Amor e sexo pelo mundo”. A minha principal base é a filósofa Judith Butler, em trabalhos como “Problema de Gênero'' e “Relatar a si mesmo”.
Na fala dos personagens, fica muito aparente como a sexualidade é um mecanismo de controle daqueles corpos. Não só homens e mulheres possuem papéis bem definidos a serem performados, como também atuam o tempo todo na construção de novas possibilidades de vivência da intimidade.
O aparato institucional do governo e da religião são elencados como os principais agentes desse mecanismo. De um lado, há uma violência policial institucionalizada e a falta de regulamentação que dê direitos às populações marginalizadas. É o caso das Hijras, que não possuem apoio governamental para encontrar emprego ou sair das ruas. Outro ponto que merece atenção é o fato das leis do país não reconhecerem a possibilidade de violência sexual dentro de um casamento.
A religião, pelos relatos, se encontra fragmentada desde o processo de colonização inglesa. Embora parte das tradições tenham sido esquecidas, o sistema de castas ainda tem um peso forte nas relações. Os conflitos entre o hinduísmo e o islamismo também tem um peso no momento de escolha de um possível parceiro(a).
Em alguma medida, a indústria cinematográfica e a mídia também são agentes relevantes na hora de moldar esses comportamentos. Conforme o relato das motoqueiras, os filmes normalizam que os homens pratiquem assédio em público com mulheres de todas as idades. Já na entrevista com a atriz Bollywoodiana, se percebe como os noticiários reiteram o discurso sobre a importância da pureza. Até mesmo a prática de sexo com preservativo é indicada como um tabu pelas entrevistadas.
Há um quadro bem claro de quais práticas sexuais são consideradas aceitáveis ou não dentro da sociedade indiana. Conforme apresentado pelo grupo de praticantes de BDSM, a estigmatização de fetiches é muito presente. Esse controle é tão forte que essas pessoas não se sentem à vontade para assumir as suas práticas sexuais publicamente.
A própria categoria de fetiche, apresentada pelo programa, tem um caráter estigmatizador. Afinal, o que é normalizado é visto como sexo e o que “desvia do padrão” é apresentado como fetiche.
Nesse contexto, grupos considerados mais progressistas têm atuado para promover mais liberdade afetiva. É o caso do “Love commando”, que dá abrigo e apoio a casais que desviam dessas normas. As próprias mulheres motoqueiras repensam ativamente o que é ser mulher. Por meio da direção, essas pessoas não só se livram do assédio no transporte público, como também conquistam liberdade e autonomia.
Para além desses grupos organizados, a mudança cultural também é movida por comportamentos estrangeiros introduzidos na cultura indiana. O principal deles apresentado no episódio são os aplicativos de encontros. Por meio de perfis públicos, essas plataformas trazem à luz comportamentos que antes só aconteciam em segredo.
As pessoas passam a assumir que se encontram por motivos românticos ou sexuais fora do contexto dos casamentos arranjados. É claro que esse comportamento é recebido com alguma incompreensão e represálias. Afinal, como o próprio episódio apresenta, não havia uma “cultura de encontros” na Índia.
Através do espelho
É importante lembrar que a sexualidade também é um mecanismo de controle mesmo nas sociedades ocidentais. Diversas questões relacionadas às vivências indianas podem causar estranhamento em um primeiro momento, mas não estão tão distantes do nosso contexto.
Podemos não ter um sistema de castas, mas ter um relacionamento com alguém de uma classe social diferente ainda é visto como um desafio. A estratificação por renda pode ser quase tão rígida quanto uma casta. Afinal, o grau de mobilidade social brasileiro é muito inferior ao indiano, segundo índice da OCDE.
Apesar do estereótipo do brasileiro como um povo aberto, ainda vivemos com conflitos religiosos o tempo todo, especialmente contra as religiões de matriz africana. E a ascensão das igrejas neopentecostais não nos deixa muito atrás com relação ao tradicionalismo.
Olhar para o amor e sexo na Índia pode causar muito estranhamento quando focamos em instituições como o casamento arranjado e o sistema de castas. Porém, ao olhar para comportamentos de como as pessoas escolhem seus parceiros ou vivem a sua sexualidade, é possível perceber a proximidade entre esses dois povos.