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Safada, bandida!

Safada, bandida!
Beth Castilho
nov. 9 - 7 min de leitura
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O ano era 2012, eu estava na cidade de Campinas, indo de uma entrevista para outra, numa missão de entender a fundo mulheres loucas por limpeza para uma das grandes marcas de produtos de limpeza do país.

No bairro onde ficava a casa da próxima recrutada, não havia uma padaria, nem boteco, tão pouco mercadinho. Era um deserto de zero pessoas caminhando nas ruas, zero barulho além de passarinhos, um calor infernal, e uma hora e quinze que eu teria que esperar até o horário combinado.

Minha mecânica durante campos de pesquisa, é me dirigir ao próximo endereço assim que termino a entrevista, e aí encontrar um lugar onde esperar. Assim, me protejo de eventuais contratempos. Na capital de São Paulo, posso dizer que sempre há um lugar para fazer a hora, encostar, recarregar telefone, fazer anotações sentada. Na Capital de São Paulo, padaria e boteco não faltam, por toda a cidade.

"Socorro, cadê padaria?"

Tentei ligar para a entrevistada - eventualmente adiantar a agenda dá certo - mas ela estava fora de casa com a família. Não havia uma sombra. Não havia uma árvore. Então, me coloquei frente ao portão da casa amarela e me conformei que ficaria ali fritando. Me ocupei em observar a casa. Havia um cachorro nos fundos, preso num cantinho, com olhar triste.

"Caramba, coitado desse cachorro triste."

Passados dez minutos, uma mulher de cerca de 30 anos, magra e agitada, surgiu dentro do terreno, de uma lateral no alto de uma escada e perguntou se eu precisava de alguma coisa. Agradeci, e expliquei que aguardava a Fulana e estava lá a trabalho. Gentilmente, ela abriu o portão e me convidou a aguardar do lado de dentro do terreno (que confiança!). Me sentei numa muretinha perto do portão e agradeci o copo de água que ela me ofereceu.  

Como boa curiosa, ela queria saber o que eu estava fazendo lá e puxou conversa. Queria saber de mim, do meu trabalho, me contou que era inquilina da casa dos fundos do sobrado, que tinha uma filha, e que gostava de pagode. Eu suava em bicas, cerrava os olhos pois a claridade era tremenda, e ela foi buscar uma água pra me servir.
Enquanto ela não voltava, observei com mais atenção ao cachorro triste, ao cantinho escuro, a mensagem "Nas Mãos de Deus" na entrada da casa e, calor, suor, incômodo, fui ficando furiosa. O ano era 2012 e, neste tempo, eu estava muito engajada no front da proteção animal, invadindo espaços para realizar resgates, articulando o tema em agendas com políticos, com o radar ligado para este tema. A plataforma que me ajudava a ganhar voz, me conectar com apoiadores e ter espaço era o Twitter. Antes de virar o copo de água, perguntei como quem não quer nada "E essa lindeza de cachorro?"

"Está aí nessa jaulinha há seis anos, sem sair".

Pronto, o tampo da minha cabeça descolou, e enlouqueci. Dentro de mim, um turbilhão de emoções foi se formando. Indignação, tristeza, raiva, vontade de gritar, desejo de denunciar, vontade de dar lição de moral, sede pra chegada desta tutora que se achava no direito de promover uma vida desgraçada pro animal. Pedi outro copo de água e respirei fundo, retomando o foco do porque eu estava lá e me aprumando para a conversa.

A família chegou, a entrevistada me recebeu com abraços e sorrisos. "Safada", eu pensei. Ela tinha uma criança pequena que ficou com o marido e nos instalamos na sala da casa, com jarra de água, café fresco e uma sombra pro papo.

O roteiro era longo, eu tinha que passar a conversa por todos os cômodos da casa, entendendo a dinâmica de limpeza, as marcas e produtos que entravam no jogo, qual as combinações e receitinhas possíveis. E o papo correu bem, embora eu estivesse obcecada pelo animal maltratado e, por isso, encaixava perguntas sobre o animal na conversa.

"Mas a rotina permanece a mesma quando o cachorro circula aqui?". E assim foi. 

Eu devo ter "encaixado" o tema cão cerca de sete ou oito vezes durante a conversa, e aquela mulher, de ombros meio encolhidos, respondia com um semblante resignado que a cachorra (era menina) era da família e nada mudava com a presença dela. Internamente, eu estava obstinada, quase que querendo chegar no ponto de poder dizer "Moça, você está errada e isso é maus tratos". 

O último ponto do roteiro era a lavanderia. Pedi pra que fôssemos até lá (eu fotografava os produtos, o armazenamento, etc). Estando nos fundos, ela me mostrou os produtos e pude cumprimentar a cachorra "Cheguei, linda, como vou te salvar dessa prisão?" pensei comigo mesma. O roteiro já estava cumprido, e pude trazer o tema da cachorra presa com mais força.

"Ela fica presinha aqui sempre?" perguntei.

A entrevistada fechou os olhos, respirou. Me disse baixinho "Ai, Beth, vou falar disso e vou chorar". Pegou no meu braço e me contou que aquela casa era de sua sogra, que não cobrava o aluguel, e morava no segundo andar pois não podia subir e descer escadas pois, num churrasco de família dois anos antes, ela foi derrubada pela cachorra que tentava fazer festa e brincar, e, por isso, proibiu que ficasse solta.

"Sabe, Beth, essa cachorra é a coisa mais importante da minha vida. É o meu amor,  minha companheira, estava comigo antes da minha filha, me entende, me faz feliz. E isso tem me matado"

Bem, lágrimas contidas escorriam dos seus olhos, e, claro, dos meus também. Toda aquela loucura que eu estava sentindo foi para o ralo, sentimentos virando do avesso. A tutora louca que maltratava seu animal não existia. Ela me contou que pensou naquele espaço pois havia sombra e a cachorra não sofreria de calor. Contou também da tentativa de rotina de caminhadas com ela, e da vontade de sair daquela casa e ter um espaço onde ela determinava as regras para a família e poderia viver plenamente com a família completa dividindo o espaço, a criança, a cachorra (que ela chamava de filha), ela e o marido. Desejei do fundo do meu coração que ela conseguisse conquistar isso, nos abraçamos e fui embora para o hotel, assimilando o mar de sentimentos e agradecendo a oportunidade de refletir e crescer.

Esse episódio me ensinou que, nem todo diferente e nem tudo que parece, é errado. Me ensinou a, ao investigar a vida alheia e estranhar determinados comportamentos,  inspirar, expirar, processar as coisas internamente. Tenho que refletir ao invés de reagir, silenciar ao invés de gritar e deixar ir. É deixar a guerra para as lutas que são de guerra.


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