Sou filho de um pai negro e uma mãe branca, mas sempre tive mais contato com o lado materno da família. Ainda que meu avô e meu tio pudessem ser vistos como negros, eles definitivamente não se identificavam dessa forma. Esse contexto, junto a uma criação de classe média, foi a receita perfeita para uma identidade racial fragmentada.
Lembro de ouvir muitas vezes durante a infância sobre como era bom eu não ter puxado tanto o meu pai, especialmente o seu cabelo crespo. Afinal, se eu tivesse um “cabelo ruim” nunca poderia deixá-lo crescer, como fiz na minha adolescência. Nessa época eu era moreninho, café com leite, talvez até pardo. Ouvia até que parecia indígena ou árabe, mas negro nem pensar.
Quando olho para trás, consigo ver diversas marcas de racismo, mesmo dentro dessa bolha protegida de criação em condomínio e escola particular. Não podia ir ao shopping de chinelo como os brancos da zona sul. Precisava estar bem arrumado, já que eu era um “bom negro”, que recebeu a melhor educação possível e vestia roupas bem passadas pela empregada doméstica.
Rap e funk eram duas coisas que passavam longe da porta de casa. Imagina se uma criança bem criada pode escutar essas letras chulas e repletas de palavrões? Não que eu precisasse escutar música erudita também. Qualquer coisa que fosse boa o bastante para passar na MTV estava de bom tamanho.
O fato de eu ter aprendido muito bem os códigos brancos garantiam que eu tivesse acesso a outras coisas. Que eu fosse compreendido e elogiado com muito mais frequência. Inconscientemente, eu tinha clareza do meu papel e sabia desempenhá-lo muito bem.
Foi só depois de adolescente que comecei a discrepância no tratamento dado a outras pessoas ao meu lado que possuíam peles mais escuras ou apenas se expressavam com outros códigos. Quando entrei em uma escola federal e passei a ter mais colegas de sala negros, começou esse processo de tomada de consciência racial.
Muitos anos depois, ainda busco repensar a minha identidade dentro dessas classificações. Enquanto tento resgatar essa cultura negra que estava ausente (ou talvez latente?), também entendo melhor o meu papel nessa realidade de contrastes.