Enquanto estava lendo sobre o conceito de biografia de Gilberto Velho, me veio à mente o monólogo de Lady Gaga no início do clipe de Marry the Night (2011). O curta de quase 14 min começa com as seguintes frases: “When I look back on my life, it's not that I don't want to see things exactly as they happened. It's just that I prefer to remember them in an artistic way” (em tradução livre, “Quando relembro minha vida, não é que eu não queira ver as coisas exatamente da forma como elas aconteceram. É só que prefiro lembrá-las de uma maneira artística”).
Em seguida, a narradora continua a refletir sobre esse processo de criar uma história a partir das suas memórias. Uma das interpretações possíveis para o clipe é que ele representa a própria trajetória da artista, do anonimato ao estrelato.
Em sua vida privada, Stefani Germanotta também passou por essas transformações antes de assumir a persona de Lady Gaga. Da garota italiana obcecada pela fama que tocava em bares nova iorquinos a uma das maiores divas pop do século XXI. Além de ter se tornado conhecida pelos seus looks criativos ou clipes com conceitos não tão óbvios, a vida pessoal de Stefani sempre foi um campo fértil para suas composições.
Além do clipe de Marry the Night, a cantora contou sobre episódios da sua vida em diversas músicas, como Hair (2011) e Speechless (2009). E, mais recentemente, catalisou diversos episódios traumáticos da sua vida em canções com inspiração house e dance em Chromatica (2020). Assim, pode-se dizer que por meio das músicas, a artista está escrevendo a sua biografia enquanto diva pop.
Até mesmo o clipe de Paparazzi (2009), que narra os altos e baixos de uma artista, foi quase profético do que seria a trajetória da cantora durante a década seguinte. Afinal, após os ambiciosos Born this Way (2011) e Artpop (2013) a cantora cairia em relativo ostracismo para só voltar a alcançar picos de sucesso com o lançamento do filme A Star Is Born (2018).
Como outras estrelas pop que vieram antes dela, Lady Gaga repaginou a sua figura pública de anos em anos. Ao olhar para o conjunto da obra, ficam claras as escolhas feitas de acordo com o campo de possibilidades que havia em cada momento. Logo quando se lançou, ela tinha uma marca clara: uma cantora extravagante, que usava roupas de passarela 24/7, escrevia suas próprias músicas e ativista LGBTQIA+.
Quando pareceu ter esgotado a sua imagem de “cantora estranha”, a artista veio com Cheek to Cheek (2014). O disco de jazz foi produzido em parceria com o cantor Tony Bennett, figura já consagrada do gênero. A mudança de estilo não foi uma grande surpresa para os fãs mais fiéis, já que a cantora sempre fez questão de falar em entrevistas sobre a variedade de suas referências.
Ela deu continuidade a essa figura pública um pouco menos pautada pelo absurdo e a estranheza em Joanne (2016). O primeiro single do álbum talvez seja a maior prova disso, já que a cantora aparece de camiseta de short jeans (uma roupa que ela não usaria nem pra ir em um aeroporto em 2009).
Em paralelo, Stefani interpretou papéis em American Horror Story (2015-2016) e lançou o documentário Gaga: Five Foot Two (2017). De certa forma, todas essas experiências culminaram na escolha de Gaga para o papel principal em A Star Is Born (2018).
Em meio a isso tudo, fica claro como, em diferentes momentos da sua trajetória, Lady Gaga escolheu diferentes habilidades como se fossem cartas na manga. Seja ao mostrar seu gosto pela arte abstrata e pela aute couture quando uma persona mais extravagante faria ela se sobressair, ou o trabalho com a atuação em um momento no qual seus CDs já não tinham o mesmo sucesso.
Claro que uma carreira musical não é construída com base apenas em escolhas individuais. Há uma série de decisões mercadológicas e estratégicas de uma equipe por trás dessa trajetória. Não é à toa que quando olhamos para as biografias de figuras tão célebres, parece quase como uma tempestade perfeita para levar aos resultados que chegam aos holofotes. No final das contas, mesmo as escolhas que não trouxeram os melhores resultados imediatamente foram peças essenciais para o sucesso a longo prazo.