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Em busca da Muiraquitã: Biografia, projeto de vida e metamorfose em Macunaíma, o Herói sem Nenhum Caráter.

Em busca da Muiraquitã: Biografia, projeto de vida e metamorfose em Macunaíma, o Herói sem Nenhum Caráter.
Vinícius Lordes Dias
fev. 17 - 6 min de leitura
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“Pouca saúde e muita saúva, os males do Brasil são”

 

Este pequeno ensaio poderia se chamar “O dia em que Gilberto Velho foi lido em Macunaíma”. Na verdade proponho esta leitura para chamar a atenção para a obra Macunaíma e poder lê-la à luz da teoria de Gilberto Velho.

O livro Macunaíma, o Herói sem Nenhum Caráter foi escrito por Mário de Andrade, um dos nomes do movimento modernista brasileiro, publicado em 1928. Cabe chamar a atenção para a obra em questão que propõe pensar o Brasil na sua dimensão diversa. O texto tem uma narrativa que dialoga com as grandes odisséias, os grandes temas da literatura, mas de um jeito muito peculiar. O movimento modernista tinha como seu ideário olhar para o Brasil de dentro do próprio Brasil, vale ressaltar que o centro cultural do mundo ocidental era a França, as escolas brasileiras ensinavam francês em seus currículos. A inquietação dos modernistas era poder realizar a antropofagia, que naquele contexto seria se alimentar da arte produzida na França, desnudá-la, e desenvolvê-la com aspectos das culturas brasileiras (a diversa cultura brasileira, por isso aqui o plural).

Este livro que é uma ficção cheias de aspectos das culturas indígenas, cantigas de roda, aspectos da cultura caipira e também com algum esforço de olhar para o Brasil que estava nascendo em São Paulo, ou seja, o país moderno, o país desenvolvido. Isto é, Macunaíma nasce dentro do país que vive com a dicotomia moderno/arcaico. O livro serve de pontapé inicial para se pensar o Brasil, olhar para ele, mesmo que de forma ficcional, com suas dificuldades e virtudes. Parece até uma ironia falar em virtudes numa obra que traz em seu título a expressão “sem nenhum caráter”, é até possível encontrar alguns traços no personagem principal que reforce esta não-virtude. No entanto, quero chamar a atenção para uma chave de leitura desta expressão que pode ser vista como um herói que carrega nenhum caráter, mas todos eles reunidos. Macunaíma é uma obra que extrapola as páginas da ficção e nos faz ler o Brasil em sua diversidade.

A leitura de Macunaíma à luz da antropologia e mais especialmente à teoria de Gilberto Velho, faz olhar para o herói de uma outra maneira. A história do livro, como apontei anteriormente, é cheia de floreios, peripécias e duelos, típicos das grandes narrativas heroicas do século XIX e início do XX. No entanto a narrativa em Macunaíma se dá numa tribo indigena, o herói nasce “preto, retinto” e demora a falar. Até os seis anos não havia dado uma palavra, até que de repente solta um “ai que preguiça!”, marca inconteste do herói. Que corrobora uma teoria muito utilizada à época para apresentar a preguiça como herança dos indígenas e a insubordinação dos pretos. Teoria que acabou sendo requentada mais recentemente em falas oficiais. Enfim, numa passagem do livro, Macunaíma toma um banho e fica branco para poder chegar em São Paulo, berço do desenvolvimento do país.

Ao narrar as peripécias de Macunaíma nos deparamos com a ideia de biografia cunhada por Gilberto Velho como sendo a trajetória que os indivíduos fazem ao longo da vida com significados. Nesse sentido, Macunaíma, chamado o tempo inteiro de herói ao longo do livro, busca fazer da sua vida uma vida cheia de significados, e além disso traça esta biografia sempre se colocando em contraponto à sociedade, buscando escolhas que o ajudem a construir esta biografia. No caso da ficção, o herói está sempre em busca de ser ele mesmo, e essa é uma constante na leitura ‘macunaímica’. Nesse aspecto, Macunaíma é uma leitura interessante para a busca da nossa identidade brasileira.

Em busca desta identidade, Macunaíma traça um projeto que é recuperar a Muiraquitã, uma joia, um amuleto. Esta foi dada por Ci, uma das conquistas do herói a quem engravida de um filho que não nasceu, e por isso Ci sobe ao céu, se transformando em estrela e antes dá a muiraquitã para Macunaíma. Em uma das batalhas que o herói se envolve ele perde essa joia e passa a buscá-la em todos os cantos. A joia é encontrada com um inimigo do herói, o gigante Piaimã, que na cidade de São Paulo se transforma em Venceslau Pietro Pietra, de quem Macunaíma tenta reaver a pedra e consegue após uma batalha travada e vencida num terreiro de macumba. Enfim, o projeto de vida de Macunaíma é recuperar a muiraquitã, ou seja, as memórias e afetos contidas naquele objeto.

Outro aspecto da teoria de Gilberto Velho é a metamorfose, que constitui sendo a virada dos individuos sobre suas biografias. Na pele de Macunaíma há a marca desta metamorfose. O herói nasce numa tribo indígena. Nasce preto. Mas ao ir para São Paulo, num banho mítico sua pele fica branca. Uma leitura interessante para um Brasil no longíquo 1928 e portanto, muito mais próximo da abolição da escravidão em 1888. Este país, onde havia muitas famílias descendentes diretos de ex-escravos, ainda convivia com esta mazela e também com a possibilidade de industrialização, modernidade e avanços técnicos em São Paulo.

Cabe pensar também na noção trazida por Gilberto Velho do campo de possibilidades. Esta noção pode ser lida em Macunaíma ao longo da narrativa do livro, pois o personagem busca inúmeras alternativas para construir a sua trajetória. A leitura de Macunaíma à luz da teoria antropológica de Gilberto Velho nos mostra como o Brasil são brasis cheios de nuances que marcam diversas trajetórias.


 


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