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Beijos em estranhos (ou o estranhamento do beijo)

Clarissa Gomes
abr. 5 - 3 min de leitura
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No exercício anterior descrevi uma situação vivida em Londres alguns anos atrás quando, sem pensar duas vezes, me aproximei de uma indiana desconhecida, amiga de amigos, e tentei cumprimentá-la com dois beijinhos na bochecha. A moça prontamente recuou, deu um pulo e desviou da minha investida, me deixando parada no ar sem entender o que estava acontecendo.

No Brasil, damos beijos nas duas bochechas em pessoas a quem acabamos de ser apresentadas sem nenhum problema. Não achamos uma atitude especialmente intrusiva ou inconveniente. Descobri que, para os indianos, a mesma lógica não vale. Automaticamente, construí um juízo de valor em relação àquela postura e considerei que ela havia sido "mal-educada" comigo. Aquilo me chocou e me deixou constrangida. Em uma típica atitude etnocêntrica, achei que ela estava errada.

Como afirma Roque de Barros Laraia, em "Cultura, um conceito antropológico", "a coerência de um hábito cultural somente pode ser analisada a partir do sistema em que pertence". A partir disso, tento entender o que aconteceu levando em consideração os próprios pressupostos culturais da nacionalidade em questão. Descobri que na Índia houve até uma ordem de prisão ao ator Richard Gere em 2007 por ter beijado no rosto uma atriz em um evento. O gesto foi considerado obsceno. Lembrei do cumprimento típico hindu, o namastê, considerado uma maneira de saudar o outro de maneira respeitosa e sem contato físico.

Pensei, por outro lado, que não estávamos nem na Índia, nem no Brasil, mas sim na Inglaterra. Os beijos no rosto na Inglaterra não são comuns e nem tão calorosos como no Brasil e nem tão calorosos, mas tampouco são rejeitados no mesmo grau em que acontece na cultura indiana. Naquele território "neutro", era difícil saber quais regras culturais deveríamos seguir. As minhas, as delas ou as do país onde a situação ocorria? Existe alguma mais "certa" que outra?

Posteriormente, em um exercício de relativismo cultural com o intuito de colocar em perspectiva o que tinha acontecido, conversei com amigos sobre os diferentes hábitos culturais referentes a saudações. Lembrei que na Rússia, amigos homens heterossexuais dão beijos na boca para se cumprimentar, o que aqui no Brasil não é comum. Se um homem russo viesse cumprimentar meu marido com um beijo na boca, ele também desviaria, assim como a indiana fez comigo. Ou seja, se tomarmos o nosso costume como parâmetro, perdemos de vista todas as variações possíveis. 

É difícil abrir mão daquilo que aprendemos e consideramos o "padrão" durante a maior parte da nossa vida. Mas, ao fazer o esforço de compreender os sentidos por trás dos hábitos considerados "estranhos", passei a questionar, de forma mais saudável, as diferenças existentes entre a minha cultura e as demais. O beijo como cumprimento, assim como todo o universo de gestos que compõem nossas experiências, tem várias versões e nenhuma está mais correta que a outra. Em tempos de reprogramação de hábitos em função do covid-19, aliás, os cumprimentos mais distantes e que prescindem de contatos físicos estão sendo mais valorizados. Em 2021, talvez fosse eu mesma a pessoa a desviar dos dois beijinhos.


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