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A Farm morreu pra mim

A Farm morreu pra mim
Renata Sampaio
nov. 5 - 4 min de leitura
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Para falar do dia que a Farm morreu, eu preciso falar um pouco de como ela ganhou vida  para mim. Ela tem uma personalidade que é só sua e por isso fica até fácil, para as admiradoras, decifrar se uma peça é ou não Farm. Ela representa brasilidade, mas guardem essa informação, pois foi justamente a incoerência deste atributo que fez a marca morrer para mim.
As peças que eu tenho dela são as das quais eu mais gosto. Sempre havia comprado em brechó ou até mesmo em uma banca da feira que vende peças com pequenas avarias. Comprava pela estampa e pelo diferencial. É uma estética que não vou mentir, ainda gosto. Porém estou falando não apenas de um produto e sim de uma relação e esta, por sua vez, morreu. Ou pelo menos é o que eu acho que aconteceu até agora.
A relação começou como um desejo, pois eu admirava e não tinha dinheiro suficiente para comprar. A primeira oportunidade veio na feira quando uma amiga me apresentou essa banquinha que tinha produtos com avaria. Já comprei body com etiqueta da loja de R$139,00 por R$20,00, por exemplo. Então depois da primeira conquista, a relação não era apenas de desejo e passou a ser um status. Eu ficava estilosa com aquelas peças e quem me via sabia que eu estava usando Farm.
Um dos meus vestidos mais bonitos eu ganhei de presente e essa é a minha única peça da marca que veio diretamente da loja. Tempos depois, uma das marcas que para mim representavam brasilidade, estampou a escravidão. O cunho não foi político ou com um viés de conscientização. Ele foi puro e estritamente comercial. Na ocasião, diante das críticas, a marca se pronunciou e disse “Esta é a nossa estampa “Rua do Mar”. Ficamos tristes com a repercussão negativa despertada por ela. Não era esta a nossa intenção. Estamos retirando as peças do nosso site e lojas. Pedimos desculpas a todos pelos sentimentos negativos gerados”.


O episódio fez com que os internautas resgatassem um editorial de Carnaval em que uma modelo branca representava Iemanjá. Até esse ponto eu já havia me questionado que brasilidade é essa que só se importa quando lhe é conveniente? Esse desconforto eu deixei guardado e desde então a marca já não era mais a mesma pra mim.


Com a pandemia passei a ter maior consciência financeira e os meus encontros com a marca passaram a ser mais virtuais. Porém, recentemente, a modelo e vendedora da loja Kathlen Romeu foi assassinada e elas acharam de bom tom divulgar um cupom da marca onde a comissão seria destinada para a família. Embora a ideia tenha partido das colegas, a marca achou de bom tom divulgá-la sem nem perceber o valor daquele ato para os semelhantes de Kathlen. A ação foi um episódio claro de oportunismo e mostrou como a marca não é feita para classes menos favorecidas. Muitas das roupas já não eram acessíveis financeiramente e biotipicamente, pois os cortes são feitos para mulheres com menos busto e quadril. Agora, além da estampa de escravos, o cupom reforçava que a Farm não existia também para as negras menos favorecidas. Elas compõem uma boa parcela da população brasileira.
A brasilidade da Farm morreu pra mim, assim como a marca. Não vou mentir que ainda admiro algumas peças, cortes e collabs com artistas. Ela morreu, mas o luto é um processo. Ainda mais quando sou impactada pela lembrança do que ela já foi pra mim por meio de publicidade e anúncios. Entretanto, vale dizer que hoje penso duas vezes antes de me relacionar e me associar com a imagem da marca. Afinal, se o consumo é um ato político a falta dele também é.


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